terça-feira, 4 de agosto de 2009

A ti, no ato da partida

Meus olhos estão cobertos por uma névoa espessa, densa. São as lágrimas que teimam em não cair, e neles permanecem, pesarosas, transformando meu olhar num mar de lamúrias. É chegada a hora.

Lembro-me de quando a ti suplicava: “Não, não me acordes! Não me acordes deste sonho!”, e tu tornavas a embalar-me nos braços, acalentando-me na doce ilusão do adormecer, como numa promessa de que jamais me deixarias.

Sei que nada posso pedir agora, pois teu destino vale mais que qualquer um dos meus pobres desejos. Eu jamais poderia encarcerar-te ou impedir-te de viver, de voar.

Por vezes, lembro-me de teu perfume, de teu toque, de tua voz. Sinto tua presença no ar, como uma leve brisa. E como uma brisa, tu partistes, porém, causastes em meu coração uma tórrida tempestade, ainda longe de cessar.

Tuas palavras ainda estão em minha mente, tuas juras ainda calam fundo em minh’alma, tuas digitais ainda estão impressas em meu corpo, como se tudo de ti ainda permanecesse em mim, fortemente imutável. Como se tu ainda estivesses aqui.

Ainda me lembro de quando me envolvias em teus braços, e éramos um só. Uma só alma, um só coração, um só ser. Lembro-me de nossos dias felizes, nossos sorrisos, quando tudo o que importava éramos nós dois, em nossas alegrias tão bem sentidas.

Há dias em que ouço tua voz a me chamar, melodiosamente, como sempre fazias. Por quantas noites, ó, céus, acordei, sobressaltada e aos prantos, sofrendo por tua ausência! Por quantas vezes a solidão me maltratou!

Apesar disso, a solidão que agora me cala é o que me mantém viva, pois junto a ela está a esperança de rever-te, e de abraçar-te, e de viver novamente todos os momentos pelos quais tanto esperamos. Esse é o elo entre nós.

Quando te sentires sozinho, não chores! Eu estarei no som da chuva caindo sobre o telhado, no seio das flores da primavera, no canto dos pássaros que embalam o amanhecer. Meu coração estará sempre junto ao teu, não importa onde, não importa quando. Eu serei sempre tua – e apenas tua!

Ver-te partir seria, para mim, o pior dos suplícios; por isso, permaneço a escrever. Recuso-me a dar-te um último beijo. Recuso-me a dizer adeus. Assim sendo, deixo-te apenas esta carta, como prova do meu amor, lembrança do que fomos e prenúncio do que seremos, em nossa honra e memória.

Diante deste céu estrelado, despeço-me, meu querido. Não direi “adeus”. Direi “até logo”, com a esperança de que voltaremos a nos encontrar, quando o sol nascer novamente.

Aquela que a ti pertence –e nada mais -,
D.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Estrela d'alva

Sê divina, estrela d'alva
E do céu nos anuncia:
"Vem chegando a noite malva,
vem chegando a noite fria!"

Sê divina e complacente
Qu'inda é tarde neste dia
Vespertina e conivente
Das estrelas mais macia

Sê impávida e latente
No dobrar do sino em vão
Mais ardente e mais brilhante
Do que estas seis horas são

Sê alegre e reluzente
Mais amena e mais vivaz
Faça crer a toda a gente
Mais do que um milagre faz

Sê do amante a luz tranquila
Nos arroubos da paixão
Em seus sonhos não vacila
Ilumina a escuridão

Sê o cantar do seresteiro
Ao tocar do violão
Nas canções que por inteiro
Fazem crer seu coração

Sê uma lágrima de prata
Nestas horas de agonia
Da mocinha que se farta
De triste melancolia

Sê o sorriso dos encantos
Numa face de criança
O melhor dos acalantos
Doce fonte de esperança

Sê a mais bela das estrelas
Segue então o teu destino
Quando erguer-me para vê-las
No teu brilho vespertino

Sê divina, estrela d'alva
E do céu nos anuncia:
"Vem chegando a noite malva,
vem chegando a noite fria!"

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cinco e meia

Era uma nebulosa madrugada. Ele estacionou seu carro à frente da porta do que parecia ser um restaurante, obviamente, ainda fechado. O céu estava escuro e um vento frio gelava os ossos de quem ali estivesse. Felizmente, não havia ninguém na rua além daquele homem, alto e esbelto, vestido num imponente terno preto, afinal, era cedo demais. Felizmente...

Olhando em seu relógio de pulso cravejado de brilhantes, recostou-se na lataria do carro e tirou do bolso um cigarro, acendendo-o. Tragava lentamente, observando a cortina de fumaça exalada, que formava, em volta dele, um tipo de neblina cinzenta. Olhou-se no espelho retrovisor, deslizou sua mão livre pelos lisos cabelos jogados para trás e sorriu levemente. Nisso, apagou o cigarro sobre o marcador do parquímetro e saiu a caminhar.

Em sua mente, quase nenhum pensamento. A única imagem que lhe vinha à cabeça era a de Sophie. Linda, gentil e tão doce Sophie! Seu andar era calmo, seus passos eram lentos, era uma cena agradável vê-lo caminhar. Entrando num beco, ele parecia procurar por alguém. Continuou a caminhar tranquilamente, desviando-se de obstáculos, até que, finalmente, encontrasse quem buscava.

Dele, naquele momento, podia-se ver somente a sombra. Da lateral do fundo do beco, ouviu-se o som de dois disparos, simultâneos a um grito de horror. Depois, o mais puro silêncio.

O homem retornou à rua, ainda com a feição tranquila, quase robótica. Tirando do bolso um telefone móvel, fez uma ligação, rápida e seca. Alguns minutos depois, três homens apareceram, adentrando os confins daquele beco. Em questão de segundos, foram em direção ao carro, abrindo o porta-malas e depositando lá um enorme pacote, que parecia um tanto quanto pesado, pois fora carregado com dificuldade. Era comprido e largo, estava coberto por um lençol branco. Logo, o porta-malas foi fechado, e o homem de terno, sentado ao volante, deu a partida no carro.

Ele dirigiu rápido, chegando a um lugar deserto. Corria um rio, por lá, numa espécie de enorme vala. Nisso, o porta-malas foi aberto, e o grandioso pacote posto para fora. Os homens se uniram novamente para carregá-lo, mas apenas três deles. Tudo que o homem de terno fazia era observá-los, sempre recostado em seu carro, numa postura absolutamente fria. Era como se cada movimento seu fosse cuidadosa e rapidamente calculado, a cada instante. O pacote foi lançado à vala.

Os homens sentaram-se numa espécia de meio-fio, e lá permaneceram por alguns minutos. Pareciam cansados do esforço realizado. O homem de terno acendeu, novamente, um cigarro. O relógio marcava cinco horas e trinta minutos, era o início da manhã. O tempo permanecia nublado. Assim que seu cigarro se acabou, ele ordenou para que todos retornassem ao carro, e dirigiu de volta ao ponto de partida. Em silêncio, quase automaticamente. Nem uma palavra, nada.

Doze horas se passaram. Era uma tarde fria. Ele estacionou seu carro, novamente, à frente do restaurante, que estava aberto e parecia simpático. A rua estava cheia, cheia de gente, de carros, de barulho, de movimento, de vida. Ele se olhou, novamente, no espelho retrovisor, oferecendo a seu próprio reflexo seu mesmo sorriso amarelo. Ajeitou os cabelos relativamente curtos, acendeu outro cigarro. Sentia-se relaxado. Eram cinco e meia, cinco e meia da tarde. Dali a dez minutos, se encontraria com Sophie. Ah, Sophie...

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Szomorú vasárnap

Um céu coberto por nuvens cinzentas. Era tudo que havia acima de sua cabeça. As nuvens carregadas ajustavam-se perfeitamente ao espaço. Seus olhos estavam fixos nele; seu corpo, deitado sobre a grama maltratada, cheia de ervas daninhas. Um trovejar. Era o prenúncio da chuva que estava por vir.

O homem permaneceu imóvel, a contemplar o cair dos pingos d'água. Eles caíam em sincronia, embebendo-o, pouco a pouco, por inteiro. Dispondo os braços na frente do rosto e movimentando as mãos, na intenção de pegá-los, sorriu tolamente. Abriu a boca e esticou a língua para senti-los, como faz uma criança, a brincar na chuva. Logo, então, levantou-se.

Caminhou a passos rápidos, saltando, como se brincasse com aquelas gotículas. Era como mágica. Era como uma viagem no tempo, guiada pelo simples fenômeno meteorológico. Seu sorriso, agora, era constante.

"Chuva redentora", pensou, "redime-me agora de todos os meus pecados". Ao criar coragem, disse as últimas palavras ao léu, em voz alta, como se gritasse ao infinito. "Leve-me para longe, muito longe! Faça-me voar com a força das águas! Chuva redentora...chuva...".

Gradativamente, foi perdendo a força e o fôlego. Tirou do bolso a foto da amada, que carregava sempre junto a si. Sentiu o aroma do papel, como se ele exalasse um perfume feminino, agradável e doce. Fechou os olhos e evocou suas lembranças íntimas. Eram belas lembranças de primaveris dias europeus. Alguns de sol, outros de chuva. "Chuva redentora...".

Sentou-se sobre um bloco de concreto, ao lado de uma das muitas lápides ali existentes. Quantas vidas perdidas...perdidas? Ao pensar melhor, pôde ver com outros olhos a morbidez, antes irrefutável, daquele lugar, e perceber que havia beleza naquele céu cinzento, naquela relva sem viço...e que na morte havia vida, por mais contraditório que parecesse. A chuva a fazia florescer.

Num instante incerto, ele a viu. Estava vestida de branco, como no dia em que ele a havia jurado amor eterno. De cabelos soltos e livres, como seu espírito. Estava bela, refletia a beleza de sua descoberta recente. Lentamente, eles se aproximaram. Ele sorriu. Ela sorriu, e apenas sussurrou em seu ouvido: "Szomorú...vasárnap...".

De mãos dadas, caminharam pelos jardins do cemitério. Tudo parecia crescer, florescer. E aquele não era apenas mais um domingo sombrio. Aquele era seu último domingo.